Dos orixás aos rituais, existe natureza

O Nordeste fez brotar Rayana, e com seu ojá, ela vai à luta pelo clima

No Brasil, há o costume de comparar nossas cidades e as europeias. Recife não escapa. “A Veneza brasileira”, chamam-na os pernambucanos. As semelhanças são fluviais, uma vez que rodeada de rios e canais, sua geografia lembra a urbe construída sobre a lagoa veneziana. São tão "parecidas" que compartilham problemas recorrentes: os ambientais. Recife ocupa a 16.ª posição no ranking das cidades mais vulneráveis às mudanças do clima, de acordo com o IPCC. É onde encontramos Rayana Burgos.

Resistente a se autodenominar "ativista", por achar que o ativismo era feito apenas na rua, hoje, aos 24 anos, constrói seu currículo na defesa do clima. Na base, a sua formação em ciências políticas, apontava em outra direção: representação feminina na América Latina — caminho que mais tarde a lançaria à área ambiental. Graduada, Rayana passou a questionar a relevância da sua pesquisa. Não desistiu. Pelo contrário, montava planos para um mestrado no exterior. Meta quebrada pela pandemia.

No ócio do isolamento, tornou-se assistente de pesquisa em um trabalho sobre gênero e clima. “Fui direcionada a trabalhar com uma pessoa que estudava mudanças climáticas e comecei a entender sobre o tema”, conta Burgos. Despertado o interesse, no mesmo ano se tornou bolsista do curso Youth Climate Leaders (YCL), uma rede global de estudos e formação em mudanças climáticas. Impulsionada, fundou o Hub da YCL em Pernambuco e deu foco à carreira ambiental.

Rayana é gestora técnica de sustentabilidade na Secretaria de Meio Ambiente, Sustentabilidade e de Fernando de Noronha, em Pernambuco. Foto: acervo pessoal/Rayana Burgos.

Apesar de jovem, o interesse pelas discussões ambientais veio antes da puberdade. Foi na infância o primeiro questionamento sobre a escassez de áreas verdes no coração da cidade. “Recife é regada pela Mata Atlântica. Me incomodava saber que em algum momento aquilo tinha sido floresta e não era mais”, relata a ativista. Para ela, a proximidade com o mar também influenciou escolhas. “No ensino médio eu falava que queria ser engenheira ou advogada ambiental, pensando nessa parte da conservação, não em mudanças climáticas”, complementa.

Pesquisar sobre meio ambiente despertou o interesse cultivado na infância, mas foi durante a faculdade, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), quando se mudou para Olinda, que percebeu em que ponto concentraria seu trabalho: na interseção entre clima e os direitos humanos. Percepção que nasceu de uma tragédia, após vivenciar o impacto da má administração urbana em relação às mudanças climáticas. A casa de Rayana foi alagada. Não só a dela, mas de toda a vizinhança, após uma obra mal sucedida na mudança de curso de um rio, em 2016. “Vi quem era pobre perder as casas e perder os sonhos”, relata. A cena se repetiu durante dois anos.

Ao notar que a pauta climática rodeava as principais discussões, seja no meio acadêmico, na roda de amigos ou desabafos familiares, Rayana começou a dar forma à concepção de ativismo em sua vida. O subjetivo agora se cristalizava em uma identificação clara: tornara-se uma ativista climática. As questões ambientais a cercavam e na religião não foi diferente. Sendo de terreiro, vê a importância do meio ambiente em tudo o que envolve a umbanda, desde os rituais até os orixás. Dessa forma, emergiu uma visão singular do ativismo climático, que reconhece as religiões como elementos essenciais de mobilização.

A relação da ativista com as religiões não foi linear. Sua família é da Umbanda Juremeira, uma vertente da religião que agrega elementos indígenas aos rituais afro-brasileiros. Como ela conta, desde a infância até a adolescência, mantinha "um pé na umbanda e o outro no catolicismo". Teve uma longa trajetória na fé cristã: fez a Eucaristia e se engajou por anos na juventude católica — inclusive, foi ao Rio de Janeiro para ver o papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, em 2013. No entanto, aos 18 anos, sentiu que a Igreja não tinha respostas para todas as suas perguntas. Foi quando voltou e fixou os pés na umbanda.

“O meu terreiro é pequeno, só frequentam pessoas da minha família. Minha mãe de santo é minha tia e as outras pessoas do terreiro são meus pais e primos", explica Burgos. Ela menciona que ser praticante da umbanda nunca foi uma obrigação. De certa forma, na infância, a mãe se sentia mais aliviada em saber que a filha não sofreria as consequências de se assumir do terreiro. Ao mesmo tempo, nunca impediu que a menina participasse quando sentia vontade.

A pernambucana também é membro da Youth Sound Board, um comitê consultivo da juventude para a cooperação da União Europeia no Brasil. Foto: Pedro Carcereri/Old Man Artes.

Ao perceber a aproximação de sua crença com o meio ambiente, tornou essa uma das suas lutas contra as mudanças climáticas. A jovem faz a conexão por dois pontos: o primeiro é por meio dos orixás e o segundo é pelos elementos presentes nos rituais. No que se prende aos orixás, são potências de um mesmo deus, Olorum, mas representados em diferentes divindades: Iemanjá, a rainha dos mares; Oxum, dona dos rios; Oxóssi, que rege a mata; e muitos outros. Nesse sentido, a conservação do planeta está diretamente ligada à proteção da imagem dessas entidades.

As religiões de matriz africana precisam ser resilientes ao considerar práticas sustentáveis, uma vez que as oferendas (que buscam a conexão entre o mundo material e imaterial) às entidades podem se tornar resíduos poluentes. Como escreveu Iyá Liliana d'Oxum no documento Guia fé no clima, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), é necessário aprender a "minimizar os conflitos existentes entre a necessidade de conservação do ambiente e a livre expressão religiosa afro-brasileira". Entregar as ofertas na terra sem o uso de recipientes é uma das práticas sustentáveis incentivadas pela sacerdotisa de umbanda.

“Mas podemos destrinchar para além da questão teológica aos orixás na natureza”, aponta Rayana. A conexão por esse segundo aspecto corresponde à formação da própria religião. No terreiro de Rayana, por exemplo, onde também há o culto à Jurema Sagrada, os elementos indígenas trazem uma conexão direta com as florestas. “Fazemos louvações a indígenas e a caboclos. Eles ensinam sobre formas harmônicas de se relacionar com a natureza, que você não precisa ter uma caça em abundância e nem uma visão muito exploradora”, complementa.

Certa vez, ouviu de um pai de santo que “a floresta virou o Mercado São José”, porque todas as ervas da gira (o culto umbandista) passam pelas mãos de outros produtores. Só o fato de não saber como esse produtor estava espiritualmente já atrapalha o processo de sintonia em um ritual. Quando as ervas são cultivadas ou colhidas diretamente da floresta, fora dessa lógica de mercado, existe a certeza de que a conexão espiritual não se originou no momento em que esse elemento foi tornado comercial. Como esclarece Burgos: "Nem todo mundo que é de terreiro entende de mudança climática, mas todos entendem de meio ambiente, entendem de planta, entendem de água e entendem de mata”.

A ativista também passou pelo budismo e o espiritismo kardecista. Foto: Pedro Carcereri/Old Man Artes.